Abrem-se as cortinas

Seu Romeu tira o vinil do envelope empoeirado.
Parece um bom dia pra ouvir essa música.



Duas horas antes.

O telefone toca. Seu Romeu corre pra atender.
Não sabe que notícia vai sair do outro lado.
Sente a boca adormecer quando ouve a voz do médico.


Duas horas depois.

A vitrola toca She Loves You.
O quarteto enche a casa de nostalgia.
O velho toma banho, deixa a água cair e o som entrar.
Não ouve o telefone tocar novamente.


Duas horas antes.

O telefone vai pro gancho e ele ainda não sabe qual deve ser a reação.
Ela estava em coma a tanto tempo que ele se preparou pra tudo e,
mesmo estando preparado pra tudo,
não soube como receber a notícia.


Duas horas depois.

Ele se troca.
Escolhe uma roupa em silêncio.
A agulha gira em cima do disco preto,
mas já não acha nenhuma trilha.


Duas horas antes.

Seu Romeu procura os papéis e documentos que precisa levar.
Confunde pressa com nervosismo.


Duas horas depois.

Sai de casa a caminho do hospital.
Não avisou ninguém da família.
O trajeto parece eterno.

Duas horas antes.

São 52 anos de casados.
Sempre teve a sensação de estar bem acompanhado.
A pessoa certa a gente não acha, a gente encaixa,
costumava falar pra todo mundo.


Duas horas depois.

Chega no hospital.
A cara do médico não parece a mesma que deu a notícia mais cedo.
Seu Romeu sente no peito a tragédia.
Sua esposa não resistiu. Ela saiu do coma e minutos depois faleceu.
Tentamos ligar novamente pra avisar.


Duas horas antes.

Saber que Julieta tinha saído do coma
foi a melhor coisa que aconteceu desde que se conheceram.
Desde que casaram.
Desde que tiveram 3 filhos.
Não teve melhores nessa vida melhor do que esse.


Duas horas depois.

Seu Romeu estava preparado pra tudo e,
mesmo estando preparado pra tudo,
não conseguiu beijar a esposa pela última vez.
A cortina da vida fechou pra ele também, ali mesmo,
na recepção do hospital.

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