Parece alzheimer, mas é saudade

É domingo.
De novo.
Arranco a folha do calendário na parede da cozinha.
Embaixo é domingo de novo.
Tudo que fiz ontem tá pra refazer. A louça. O lixo. A roupa. As contas. Acordei com o mesmo sono. Com a mesma fome. E inclusive, sem a mesma vontade.
Como é difícil ser a gente mesmo duas vezes na mesma vida.
O cachorro traz a bolinha suja de terra. Olho no relógio e é a mesma hora de ontem. Se não me engano a chaleira vai começar a apitar em instantes. A nuvem vai liberar o sol e um feixe de luz vai entrar pela janela. Clareando a cozinha. Mas não vai esquentar. Grãos de poeira vão dançar dentro da luz. O telefone vai tocar umas sete vezes até eu chegar na sala. Vou atender com a mão e o coração apertados. Do outro lado uma voz cheia dúvida não sabe se fala ou soluça.
Vovô morreu.
Não vou ouvir mais nada. Em parte porque eu não consigo, em parte porque eu não quero. Mesmo sabendo que isso vai acontecer de novo, não estarei preparado. O dia de hoje nunca mais vai sair da minha cabeça. 
Vou correr até a cozinha, levantar a folha do calendário, amanhã é domingo de novo. Perder vovô uma vez, é perder vovô todos os dias.
Essa é a hora que vai começar a chover.

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