E ele amou Alice pelo resto da vida

O cinza do céu estava um tom acima se comparado aos outros dias daquele inverno. As folhas no topo das árvores pareciam queimadas pelas geadas, enquanto o restante estava lá, imóvel, intacto. Ao longe dava pra ver crianças brincando com bolas, discos e tudo mais o que os pais tinham paciência de carregar até o parque. O gramado trazia uma aparência cansada. Reflexo da alegria dos animais e da caminhada dos distraídos humanos que passaram lá por cima. Os bancos, faziam-se ocupados por famílias, namorados, amantes e solitários. Era manhã de domingo, como qualquer manhã de domingo. A diferença estava no frio, que às vezes dava trégua e às vezes preferia não.

Em meio a alegrias alheias, ele era o único que sempre estava lá; no mesmo lugar; não precisava ser domingo; não precisava estar frio; nem acompanhado, que era o mais comum. Nunca foi visto com alguém. Não sabiam como era sua voz, não sabiam o que pensava, o que fazia, ou simplesmente quem era. Após tantos anos, ele já fazia parte da paisagem. Seu pensamento e filosofia por estar sozinho se resumiam no fato de nunca ter encontrado um amor. Nunca encontrou porque na verdade nunca chegou a procurar. Achava que o amor era uma forma de camuflar ao coração, a passagem do tempo. Viveu sozinho desde que não tinha mais os pais.

No parque, como todas as vezes, a escuridão da noite se aproximava e ele não tendo mais o que fazer, preferiu levantar e seguir o caminho pra casa. Em poucos passos percebeu de longe que, no banco posto exatamente atrás do seu, repousava um livro. Que com a proximidade se fez revelar um diário. Nunca teve a vida dos outros como fonte de alimentação pra sua curiosidade, mas o que o fez ir até o banco, foi sua preocupação com livros. Não havia mais ninguém no parque e ele não o deixaria naquela situação. Pegou o diário, colocou em baixo do braço e seguiu seu destino. Chegou em casa um pouco mais tarde do que o de costume, caminhou devagar com um leve pensamento sobre o que poderia conter aquelas páginas anônimas. Pensou algumas vezes em abrir e ler, mas, manteve a tranquilidade.

Seu apartamento. Três cômodos escuros e um banheiro aparentemente limpo. Um dos cômodos era utilizado como cozinha, que levava pendurada em uma das paredes, todos os objetos que fossem necessários para criar alguma coisa que servisse de alimentação. Uma mesa central compunha o ambiente.

Em outro espaço, era feito o quarto. Uma cama cercada de livros, deixava o ambiente ainda mais tenso. Nietzsche era o nome da vez. Pelo menos parecia ser isso. Era o único que repousava na cabeceira. Completando a moradia, um outro quarto onde grande parte das coisas, em sua maioria, desnecessárias, amontoavam-se e ligavam-se primorosamente por teias tecidas especialmente para aquela situação, uma reunião de representações físicas, sonoras e olfativas do passado.

As horas passaram como em qualquer clichê da vida real, e depois de um tempo na cama sem conseguir dormir, pegou novamente o diário, que estava bem posicionado em cima de uma pilha lateral de livros, e começou a folheá-lo com todo carinho e cuidado, afinal era a vida de outra pessoa que estava traduzida ali.

E ele não tinha nada a ver com isso.

Recolocou em seu lugar a pequena biografia do cotidiano, e com a consciência pesada, virou de lado e fechou os olhos.

Os olhos ficaram fechados por muito tempo, mas o sono não chegava. Sentou na cama acendeu a luz e, definitivamente, abriu-o.

As páginas que seguiram foram resumos detalhados de uma vida construída por desgraças e desesperos. Conheceu uma mulher amargurada sem saber quem era. Descobriu mais alguém solitário no mundo assim como ele. A cada linha se identificava mais e mais. A cada página que relatava um novo dia de isolamento social, amoroso e intelectual, ele ficava mais preso aos acontecimentos. Começou a compartilhar com ela, a vida, o sofrimento e as sensações. Como ação do tempo, o dia voltou a ficar claro e ele continuava enfeitiçado pelas palavras que narravam uma taciturna história. Tornava-se cada vez mais impressionado, comovido. Vivenciava os relatos como se fosse ele.

Aquele diário passou a ser um livro em sua rotina. Acompanhava o que lia e incorporava todas as situações descritas. Iniciou o desgastante processo que muitos já conheciam; amar; e nesse caso, um amor platônico, uma paixão distante da autora daquela literatura real.

A partir daquele dia, não apareceu mais no parque; ficou isolado na solidão de seu apartamento por muito tempo e, durante semanas, construiu pela primeira vez em toda sua existência, um sentimento de extremo interesse por alguém. Uma obsessão unilateral. Um desejo egoísta, compartilhado com o espelho, sabido apenas pela consciência e invejado até por ele mesmo que, infelizmente, chegaria ao fim. Como toda boa e crua realidade.

E chegou.

Esse momento foi quando percebeu que se aproximava da última página, o pequeno caderno, e ele, mesmo sabendo tudo sobre a existência de alguém que se encaixa exatamente com seus desejos, continuaria a conhecê-la como desconhecida. Sonharia desejos infindados, choraria por amor descompartilhado. E, amargamente, na manhã daquele 23 de outubro, o diário apresenta seus últimos escritos:

“... depois de todos esses conflitos pessoais e todas as desilusões amorosas, decidi nunca mais confiar minhas angústias a alguém; viver só; essa será minha melhor experiência de vida a partir de hoje.”

Alice

Comentários

Daniela Valente disse…
Que lindo!!!
amei.
"Achava que o amor era uma forma de camuflar ao coração"
perfeito. Quero mais!
abraços.
Pedro disse…
Não havia mais diário, só solidão...
Ana Marques disse…
É a maldição de encontrar alguém exatamente igual a nós mesmos.

Gostei muito.
Beijos.
Ju Fuzetto disse…
E a solidão brindou com o último capítulo do amor....


Um beijo.
Anônimo disse…
Oi bonita este blog parece muito organizado.........bom trabalho :)
Gostei muito Continua assim !!

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