Maldita vida

Tudo começou com um barulho incrivelmente incômodo. Buzinas, freios, ferros e por fim, gritos, muitos gritos. Uma sinfonia urbana que não durou muito tempo. Fechei os olhos pra poupar minha visão. Bobeira. Quando abri não tinha como não ver, estava lá, no chão, um rapaz ensanguentado, de cara no asfalto. Imóvel.

Uma multidão se aproximava do local. Mais e mais pessoas cercavam o corpo. Corpo mesmo, pois àquela altura, a única coisa que restava do rapaz era só o corpo. Pobre corpo.

Mesmo com o número crescente de pessoas em volta da situação, minha visão do ocorrido continuava limpa e clara. Nada de sirenes, nada de ajuda, nada de nada. Só curiosos.

Eu não sentia dó do que via. Nem sequer pensava sobre a ocasião. Apenas observava. Observava como todos os outros. Alguns choravam a morte daquele ser. Não sei por qual motivo, nem o conheciam.

Telefones tocavam, a impressa chegava e o trânsito aumentava. Mas nada de alguém pra socorrer aquele pedaço da sociedade.

Eu já pensava em ir embora, afinal, o que ganharia ficando ali parado, olhando e reclamando? Uma pessoa que nenhum dos presentes conhece. Uma pessoa que talvez quisesse esse fim mesmo, vai saber. Atravessar a rua daquele jeito não era pra qualquer um. Qualquer um assim, em sã consciência. Mas pela pressa, desespero e pouca atenção, provavelmente era isso mesmo que ele queria. A morte. Bem, está aí então, se era isso que você queria, boa sorte meu caro.

O socorro chegou. Enfim, não sei pra quê. Quis até questionar, gritei – não se preocupa com esse aí não, ninguém conhece, já era - mas ninguém deu atenção, parecia que estavam em transe. Chocados. Paralisados como o corpo. Surdos emocionalmente pra ouvir reclamações, eu acho. Os socorristas continuaram o trabalho de reanimar aquele monte de carne.

- Parem. Gritei. – Deixem de ser idiotas, era isso mesmo que ele queria. Morrer. – Carreguem esse resto de ser humano pr’um cemitério. Mas, contrariando minha opinião, continuavam uma luta constante entre essa e a outra vida. Mais por obrigação do que por esperança.

O tempo passava, eu desacreditava, as pessoas desacreditavam, mas os médicos não. Insistiam e eu ria, era a única coisa que podia fazer diante da cômica situação. Uma tentativa a meu ver, frustrada, de trazer de volta alguém com passagem já marcada.

Quando um súbito mal-estar me fez parar de sorrir. Estranhamente as coisas começaram a escurecer, os barulhos começaram a voltar e uma nauseante e dolorida sensação tomou conta. Remorso?

Fechei os olhos novamente pra poupar minha visão. Mas, infelizmente só os olhos foram poupados. O corpo pôde sentir tudo aquilo. Dor. Muita dor. Quando os olhos involuntariamente voltaram a enxergar, uma película avermelhada cobria minha visão. Cobria, mas não ao ponto de me cegar, pude ver as formas que estavam em minha frente. Muitos rostos assustados e duas cabeças, responsáveis por me trazer de volta à essa vida. Maldita vida.

Comentários

Anônimo disse…
Desta vez ninguém morreu no final! HEHE
Tiago Moralles disse…
Mandou bem Lineu hehehe.
Ila Fox disse…
Uau, até arrepiou! demais.
Iasnara disse…
ninguém morreu, mas fiquei aflita antes do fim.
Tiago Moralles disse…
Se deu pra gerar aflição então tá bom hehe.
Fernando Luz disse…
Praticamente um novo Allan Poe. rs
Gessica Borges disse…
Não terminou com morte, mas começou com ela, como não poderia deixar de ser.

Andou tendo alguma experiência espírita Ti?

O legal desse conto é que eu já me imaginei numa cena dessas (sendo o ex-morto)várias vezes.

Que azar o do sujeito, que azar....
Tiago Moralles disse…
Você que anda imaginando e eu que tive experiências hehe.
Anônimo disse…
hahaha muito bom, tiagão!

abraços
Simone Beniste disse…
oi, cheguei ao seu blog através do blog da Cá. Gostei de como estrutura seu conto, de como vc consegue sustentar o mistério do leitor, guardando o desfecho.
Tb escrevo contos, mas nao os publico e engraçado q andei pensando nisso por esses dias, incentivada por amigos.
Qdo o fizer, te convido à leitura.
Simone
Tiago Moralles disse…
Valeu Simone.
Feliz que tenha gostado.
Estarei esperando pelo convite.
Beijo.

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